HÚMUS,
HOMO, HUMILDE
ROMILDO SANT'ANNA
José Antônio da Silva nasceu em Sales Oliveira,
1909; morreu em São Paulo,
1996. Pela vida, mordia-lhe a dor do desapreço e da incompreensão. Foi pintor e
escritor; considerado o maior naïf do Brasil. Seus feitos pessoais e como
artista o revelaram antena de nossa cultura de raízes; é o rio-pretense mais
famoso nas artes plásticas, no Brasil e no exterior. Criado na roça e filho de
humildes meeiros, José Antônio chegou a Rio Preto bem jovem, a capinar em
sítios e fazendas da região. Sua disposição para a arte o chamou para a cidade,
em finais de 1930. Sem eira nem beira, foi alojado com a mulher e os seis
filhos descalços, nos fundos do Centro Espírita Allan Kardec. Realizava o
serviço que aparecia, de carroceiro a guarda-noites de hotéis. Já famoso em São Paulo na década de
1950, e por indicação do governador, lhe foi dado emprego na Prefeitura
Municipal. Era o faxineiro da Biblioteca. Muito antes já havia criado uma
pequena Galeria de Arte, em sua residência. Nem sabia o matuto da roça que estava
criando o primeiro Museu de Arte em
São José do Rio Preto.
Desde criança sentiu inclinação
para o desenho. Rabiscava em superfícies improvisadas. Autodidata, corajoso,
visionário e aventureiro, inventando os próprios meios, Silva barganhava
pinturas por mantimentos, remédios e bugigangas; dava quadros em troca de
receitas médicas. Semi-alfabetizado, e durante 10 anos, escreveu o Romance da Minha Vida, editado em
49 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo. Publicou os versos de Sou Artista, Sou Poeta (81) e três outras narrativas romanceadas – Maria Clara (70, prefácio de Antônio Cândido), Alice (71, adaptada em 86 como a peça “Rosa de Cabriúna”, pelo Centro de
Pesquisa Teatral do Sesc, direção de Márcia Medina, sob a supervisão de Antunes
Filho) e Fazenda da Boa Esperança (87).
Embora no decênio de 1940 fosse
desconhecido em Rio Preto,
merecendo apoio de uns poucos jornalistas e intelectuais, como Basileu Toledo
França e Dinorath do Valle, Silva foi revelado em 1946, na exposição de
inauguração da Casa de Cultura, pelos críticos Lourival Gomes Machado, João
Cruz Costa e Paulo Mendes de Almeida. Imbuídos estética e ideologicamente pelo
Modernismo de 22, aqueles intelectuais enxergaram no artista genuína expressão
da cultura rural brasileira, mormente a caipira. José Antônio participou, em
1949, da Exposição de Pintura Paulista, no Ministério da Educação e Saúde da
então capital federal. Expôs em 50 no MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Em 51 recebeu o Prêmio de Aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. No
ano seguinte, foi selecionado para participar da XXVI Bienal de Veneza. Em 53
participou da II Bienal de São Paulo; em 54, foi premiado pela II Bienal
Hispano-americana de Havana; em 55, foi admirado na Exposição Internacional de
Lissone, Milão. Em 56, mencionado no “The Arts in Brazil”, de Pietro Maria
Bardi, Milão; em 60 foi referido no “Who’s who in Latin América”, dicionário de
personalidades notáveis editado por Wheeler Sammors de Chicago. Passaram-se
muitos anos e conquistas. Em 87, além da exposição coletiva Brèsil Arts
Populaires Contemporain organizada pelo Ministério da Cultura e a Maison des
Cultures du Monde da França, fez parte da Sala Especial Imaginários Singulares
da XIX Bienal de São Paulo.
Em 1966, Silva criou o Museu
Municipal de Arte Contemporânea de Rio Preto. Ainda nesse ano, além de
coletivas em Moscou e Paris, foi distinguido com “Sala Especial” na Bienal
Internacional de Veneza. É citado em dicionários e enciclopédias nacionais e
estrangeiras; referido e estudado em livros de história da arte. Há publicações
sobre o artista no Brasil e no exterior, além de estudos universitários de alto
nível. Acerca do artista foram realizados filme de cinema, reportagens em
jornais e revistas, inúmeros programas de televisão e o CD-Rom ȁJosé Antônio da
Silva”, produzido pela Associação dos Amigos da Pinacoteca e Prefeitura de São
Paulo. Silva possui quadros em Galerias e Museus de várias partes do mundo. Na
capital, faz parte do MASP, do MAM, do MAC, da Pinacoteca do Estado e do Museu de
Arte Sacra.
Após a aposentadoria da
Biblioteca Municipal, José estabeleceu domicílio e atelier em São Paulo. O Museu de
Arte Contemporânea foi fechado e as obras do acervo, assim como objetos
históricos coletados pelo artista, ficaram abandonados, sujeitos ao calor e à
umidade, às traças, ao fungo... ao esquecimento. Anos mais tarde, essa fortuna
cultural foi doada pelo artista a Rio Preto e, em 80, inaugurado o MAP – Museu
de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’. Em 99, com a interdição do
prédio, as telas de Silva foram depositadas nos porões do Teatro Municipal,
onde permaneceram até março de 2001.
Silva foi um Antônio; um José...
tudo nome de gente simples, ordeira e cumpridora. Foi emblema político e
gritante do sem-terra, do sem-teto, do sem-nada que venceu na vida. À moda dos
artistas populares, e incorporando tardiamente um ardente romantismo, fez de
sua existência, arte; de sua arte, vida. Era personagem de si mesmo, um rapsodo
perdido em
desejos. Materializou o mito do pertencimento à nação... ao
caipirismo. Seu tino para a expressão crua da arte fez ecoar pelos quatro
ventos as aspirações, devaneios, sentimentos e paixão que identificam a maioria
esquecida e espezinhada do país. Seu primitivismo de cores desnorteantes – para
os padrões chiques das “belas artes” – revigora arquétipos e símbolos
elementares da existência coletiva. O artista parece a encarnação da voz do
povo, pronunciada no dialeto esquecido pelas elites integradas. Seja em
pintura, literatura ou no que lhe indicasse a prodigiosa inspiração, Silva se
expressava – como poetizaria Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” – ȁna
língua errada do povo, na língua certa do povo, pois ele é que fala gostoso o
português do Brasil”. José Antônio, ingênuo em muitos aspectos, foi sujeito sabido,
despachado, instintivo, descomedido, espontâneo e previdente; foi singelamente
culto – no sentido mais refinado que se dá a essa palavra.
Em 12 de março de 2001, quando o
artista completaria 92 anos, o MAP voltou a funcionar. Entre abril e junho
foram restauradas 11 de suas telas a óleo, com o apoio cultural do SESC – Rio
Preto. Em março de 2002, inaugura-se no MAP – Museu de Arte Primitivista ‘José
Antônio da Silva’ a exposição permanente Silva: Imagens e Meios, composta de 26
objetos fotográficos impregnados de óleo sobre tela, com forte influência da
Pop Art norte-americana e outros movimentos experimentais de 1960 e 70.
Materializa-se outra vez a utopia de Silva, acalentada desde moço, quando
chegou em Rio Preto,
de mala e cuia, desejos visionários, a tristeza encalacrada do caipira
tradicional, e a semente quixotesca de melhores dias. Cores exuberantes de seus
quadros refletem uma sesmaria rústica e remota, que se transformou no Brasil de
hoje.
Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das
Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da
Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.
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